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Revista ERREPÊ 360°

sobre FOTOS: ACERVO PESSOAL CONSEQUÊNCIAS DE UMA TRAGÉDIA DE LAMA Maria acordou cedo, o sol ainda não raiou, o relógio mostra que são quatro da manhã e, pelas suas contas, ela dormiu apenas duas horas. Após dez minutos tentando dormir novamente, ela olha para o lado e percebe que a cama continua vazia, que esses dez meses que passaram só trouxeram ainda mais dor e nenhuma notícia boa. Seu choro é abafado pelo filho mais velho, de 15 anos. Desde a morte do pai, em uma das maiores tragédias ambientais do país, ele acorda todas as noites com pesadelos, agoniado. Maria sempre sai correndo para conseguir amparar o adolescente. Quando chega perto e o abraça, eles tornam a chorar juntos. A mulher não sabe como seu marido morreu. Ele foi a única vítima que ainda não foi encontrada. Além de perder o pai de seus três filhos, Maria perdeu o irmão, a cunhada e a sua casa. Porém, apenas Manoel, com o qual era casada há 20 anos, não conseguiu enterrar. Seu paradeiro ainda é um mistério para todos. Tendo sido obrigada a mudar da cidade em que morou a vida toda, Maria luta para que um dia encontrem seu marido. Após todo o sofrimento da madrugada, consegue pegar no sono novamente. Essa tem sido sua rotina. Ninguém possui notícias de Manoel. Uns dizem que antes da barragem se romper ele estava em um local, outros dizem que não, mas a verdade é que até agora ninguém conseguiu encontrá-lo. As buscas ainda não acabaram e as chances de Maria um dia conseguir enterrar seu marido são mínimas. A viúva hoje vive na casa que seus pais conseguiram comprar com as indenizações recebidas. E todos os dias, após levar os filhos para escola, ela senta na sala e faz vários telefonemas em busca de notícias que sabe que não vai receber. Não consegue mais tocar a sua vida. Maria recebe ajuda psicológica, mas a dor que sente a impede de seguir em frente, de se reestruturar. Era feliz. Sua casa não era grande, mas acomodava bem a família. Os três cachorros, que não sobreviveram à enchente tóxica que destruiu a cidade, viviam soltos e tranquilos. O marido tinha um emprego CrÔnica | 37 “Maria, 40 anos, nasceu e construiu sua vida em uma pequena cidade no interior do país. O cotidiano pacato de Maria mudou completamente no dia 05 de novembro de 2015, exatamente no momento em que uma barragem se rompeu e tirou sua casa, cachorros, familiares, amigos e seu marido” As buscas ainda não acabaram e as chances de Maria um dia conseguir enterrar seu marido são mínimas Por Beatriz Santos sólido de mais de 20 anos em uma das maiores companhias do país, que ficava no vilarejo no vizinho. Sempre que o sono vence a dor que sente, Maria sonha com a antiga casa, com Manoel brincando com os filhos e com os cachorros pelo quintal. O sonho é sempre interrompido pela imagem da lama atingindo a cidade. A tragédia marcou a vida da família, principalmente pela falta de respostas. Maria ainda busca forças para conseguir educar os filhos, que agora são o que resta de toda sua família. Após tantas perdas, seu maior desejo é um dia poder enterrar Manoel. Assim conseguiria, enfim, limpar toda a lama que carrega em seu peito. FOTO: VERÔNICA PÁDUA


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